Retomada dos gastos com cartão eleva endividamento dos que ganham mais de dez salários mínimos e favorece recuperação da economia
Cássia Almeida 21/11/2020 – o globo
RIO — A aposentada da Justiça do Trabalho Cassia Amorim, depois de seis meses de quarentena restrita para se proteger do novo coronavírus, começa, aos poucos, a voltar a sair e consumir. Ao salão preferido, ela tem ido sempre desde outubro, mas a viagem para ver o filho e os netos que moram em Nova York ficou para o ano que vem. Ela conta que reduziu os gastos em 30% durante o confinamento, mas a poupança forçada começou a diminuir com mais saídas. Ela já percebeu que seu consumo está agora 15% menor que antes da pandemia.
—Voltei a almoçar com minhas amigas, a comprar uma coisa no shopping. Cinema ainda não tive coragem de ir ainda — conta. — Ia ao cinema de 15 em 15 dias com uma amiga, mas ainda não fui.
A Confederação Nacional do Comércio (CNC) começou a ver esse consumo maior da classe média e classe média alta em setembro. A parcela das famílias com dívidas entre as que têm renda de dez salários mínimos para cima subiu pelo segundo mês consecutivo em outubro, chegando a 59,4%.
Assim que a quarentena começou, esse contingente representava 62,3%, mas caiu para 57,8% em agosto, menor patamar desde o início da pandemia. Como o gasto com cartão de crédito é considerado endividamento, acaba sendo mais um indicador de consumo do que de necessidade de financiamento.
— O aumento das dívidas entre as famílias com mais de dez salários indica que elas estão, aos poucos, retomando o consumo. Durante toda a pandemia, mês após mês, vimos queda atrás de queda do nível de endividamento. Agosto foi ponto de inflexão. Modalidades de crédito que cresceram são as mais associadas a consumo, como cartão de crédito e cheque especial — afirma Izis Ferreira, economista da CNC responsável pela pesquisa.
Reação lenta nos serviços
Os serviços prestados às famílias, que são divididos em alojamento e alimentação e outros serviços, são os que estão sofrendo mais com o distanciamento social desde o início da pandemia. No entanto, começam a esboçar reação e a se recuperar com a reabertura dos estabelecimentos.
Restaurantes e bares, por exemplo, faturaram mais em agosto e setembro, compensando parte das perdas desde março. Cresceram 9,1% em setembro, mas, no ano, o recuo ainda é de 38%. Já chegou a ser de 60% em maio e vem reduzindo com a alta no consumo das classes altas.
Os outros serviços, como os de cabeleireiros, tiveram desempenho um pouco melhor. Cresceram 10,9% em setembro frente a agosto e acumulam queda de 27,8% no ano, mas já tinham caído 44%.

O salão de beleza foi o primeiro lugar que Cássia foi quando começou a sair:
— Voltei ao salão com força total. Vou toda a semana.
Segundo Izis, da CNC, ainda há espaço para o consumo das classes de renda alta crescer:
— Antes da pandemia, 62,3% desse grupo estavam endividados. Chegou a 59,4%, ainda há margem para crescer.
Nas favelas. Há R$ 159 bilhões para consumir
Lucas Assis, economista da Tendências Consultoria que estuda mobilidade entre as classes de renda, diz que a recuperação recente da economia tende a favorecer os que ganham mais em momentos seguintes a retrações do Produto Interno Bruto (PIB):
— Nas classes A e B, há participação maior de empregadores, os primeiros a sentir efeitos de reação econômica, antes de outros trabalhadores. Há participação grande também da elite do funcionalismo público. A flexibilização das medidas de isolamento contribuiu para um ritmo mais positivo da economia, o que acaba beneficiando o consumo das classes sociais mais altas.
Mais gente no topo
Bancos e consultorias têm melhorado projeções do desempenho da economia brasileira. A previsão de queda do PIB chegou a 6,6% no fim de junho. Caiu para -4,66% na semana passada, de acordo com o Boletim Focus, pesquisa do Banco Central com mais de cem instituições financeiras.
A classe A, com renda superior a R$ 19.257 mensais, vai crescer 4% em 2021, pelas previsões da consultoria, maior alta entre as faixas de renda.
O diretor da FGV Social, Marcelo Neri, com outra metodologia, identificou um aumento na classe AB (renda familiar acima de dois salários mínimos per capita). Em julho, 5,8 milhões de pessoas da Classe AB tinham descido para Classe C (de meio a dois salários per capita). Em agosto, 1 milhão já tinha voltado ao patamar de renda superior, indicando que os ganhos melhoraram mais para esse grupo com a flexibilização da quarentena:
— A renda do trabalho está voltando para esse grupo.
Outro indicador de que o consumo começa a voltar é a captação da poupança. Continua recebendo mais depósitos do que saques, só que num ritmo menor. No início do isolamento social, em meados de março, os depósitos superaram os saques em R$ 12,1 bilhões.
Em maio já pulara para R$ 37,2 bilhões. No mês passado, essa captação líquida diminuiu para R$ 7 bilhões, já refletindo esse consumo maior com o relaxamento da quarentena e pela redução do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300 em setembro.
Assis diz que parte da economia forçada com a quarentena para combater a Covid-19 está sendo destinada ao consumo. Isso era uma dúvida logo no início da pandemia.
— Mas, as incertezas sobre a evolução da doença e do cenário fiscal podem voltar a inibir esse consumo — diz o economista sobre o risco de uma segunda onda forte de infecções.
Cássia espera que, no ano que vem, possa voltar a visitar o filho e os netos nos EUA. Por enquanto, já voltou a caminhar na praia.

 

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